A culpa é dos identitários?
Seriam os "identitários" os verdadeiros culpados pela ascensão do fascismo?
Octavia Butler é uma das minhas escritoras preferidas, e não apenas no campo da ficção científica, mas da literatura como um todo. Butler se apropria dos tropos clássicos da ficção científica, torcendo-os, pondo-os mesmo ao avesso ao reescrevê-los de sua própria perspectiva, a de uma mulher negra criada nos Estados Unidos dos anos 50.
Com efeito, enquanto a ficção científica clássica - digamos assim - se propõe a especular sobre o que aconteceria se “pudéssemos” viajar no tempo, Butler descoloca o problema acrescentando um termo crucial: a sua própria experiência. Afinal, viajar no tempo muda totalmente de sentido quando adotamos a perspectiva de uma mulher negra.
Dependendo de quem for o “nós” desse “pudéssemos”, o passado se torna um campo perigoso e o futuro um lugar incerto.
Essa é, justamente, a proposta de duas de suas maiores histórias, a primeira é “Kindred: Laços de sangue” e a segunda está na trilogia inacabada das “Parábolas”. Em “Kindred”, Butler imagina a história de Dana, uma mulher negra que repentinamente viaja para o passado, para os Estados Unidos do século XIX. Em “Parábolas”, a autora vai na direção contrária, descrevendo a vida de Lauren Olamina, uma mulher negra, sobrevivente de um Estados Unidos devastado pelas mudanças climáticas. Um mundo perturbadoramente familiar.
Em determinado momento, de forma muito sutil, as obras se “encontram”. Pois “Parábolas” descrevem a nostalgia americana como um dos maiores vetores da destruição daquele país. Sua população é simplesmente incapaz de inventar para si um novo mundo, uma nova sociedade, mesmo diante do fim iminente. Inclusive, em determinado momento, a protagonista se vê às voltas com um grupo de supremacistas brancos que entoam sintomáticamente “Make America Great Again”.
O romance é de 1998.
O ponto de Butler é, justamente, como não apenas a política, mas a própria vida estadunidense, o seu próprio cerne, é motivado por essa nostalgia de um tempo passado, de um tempo onde tão somente os brancos podiam viver bem.
Como a realidade do século XIX para onde sua protagonista Dana é transportada.
Uma ideologia que se fortalece, justamente, diante da constatação de que as coisas não andam tão bem assim, diante da precarização da própria vida operada pelo capitalismo. Repetem “Make America Great Again”, mas não dizem que a “América Grande” tinha um rosto muito específico, o homem branco. Lembram-se do sonho americano, “ignorando” - com muitas aspas - que ele representa um pesadelo para aqueles que não se se assemelham ao rosto que originalmente o sonhou.
Ignoram, de fato, que a maioria deles, brancos, inclusive, não vão ser capazes de viver esse “sonho”. Como nunca o foram. Ignoram que esse passado, idílico, de fato nunca existiu.
Ignoram que tudo isso nunca passou de um sonho.
E por isso mesmo, por essa ignorância, motivados pela raiva ou pela esperança, fazem desse sonho, dessa promessa, o cerne de suas vidas, constituindo subjetividades ao seu redor.
Suas próprias identidades, inclusive.
A própria branquitude.
E esse é o ponto desse texto, justamente. Pois não faltou quem atribuísse de forma absurda a vitória de Trump aos “identitários”, que responsabilizasse a mobilização política das minorias sociais pela ressurgência do fascismo nos EUA.
Ao dizer isso, ignoram que o fascismo nunca foi embora, pelo contrário, ignoram que ele constitui o próprio norte daquela sociedade, aquilo que lhe mobiliza, o seu próprio combustível. Esquecem que esse é o verdadeiro sonho americano. Esquecem, sobretudo, que ele, por sua própria definição, é um projeto identitário.
Um projeto branco.
Ignoram que a ascensão de Trump é uma realização desse projeto. É, nesses termos, uma realização identitária.
Ignoram que esses identitários são os verdadeiros culpados por Trump, não aqueles que lutam para resistir ao seu projeto supremacista.
Post scriptum
Talvez haja nos ataques de uma certa parcela das esquerdas aos “identitários” uma ideologia semelhante ao “Make América Great Again”, a nostalgia de um tempo onde pobres, negros, indígenas, mulheres e LGBTQIAPN+ não tinham voz na esquerda, cabendo a estes apenas obedecer as ordens e diretrizes de uma certa intelligentsia esquerdista.
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Na década de 60 um historiador chamado E.P. Thompson já dizia que o trabalhador não possui apenas a identidade de trabalhador, mas várias identidades, frequentando diversos espaços de sociabilidade. Ele era marxista. Então me assombra muito ver parte da esquerda ignorando isso e caindo em falácias
Há conexão direta e muito boa com o texto sobre a imperatividade de aprender a perder. Afinal, a culpa ao identitário é uma fulga do aprendizado.